Não era a primeira vez que dona Maria sentia a incômoda sensação de não se lembrar onde estava e nem como foi parar ali. Estes episódios lhe pareciam cada vez mais frequentes, mas tinha medo de contar pros filhos e acabar enfiada num asilo.
Na pequena cidade onde morava, dona Maria frequentava sempre os mesmos lugares: a igreja e o mercadinho do seu Jonas. Da última vez que teve um desses apagões de memória foi uma confusão só. Não entendeu como acabou dentro do puteiro, nem porque o padre Arlindo encontrava-se sentado numa mesa batendo papo com o dono do local.
Dona Maria era conhecida por seu temperamento explosivo e seu fervor a Deus. Quando percebeu que estava dentro daquela espelunca com cheiro de devassidão, sacou sua bengala e bateu em quem cruzasse o seu caminho rumo à porta, incluindo o padre. A velhinha se pôs pra fora com passinhos rápidos e nervosos.
Pelo menos dessa vez era diferente, não sabia onde estava, mas o local não tinha aquele aspecto decadente. Pelo contrário, Dona Maria teve a impressão de estar na sala de espera de um daqueles hospitais da cidade grande. Tudo muito claro, limpo e organizado; com lindas paredes brancas e janelas imensas; o sol inundava o local com o brilho do fim da tarde. Reparou que no fundo do amplo salão existiam algumas divisórias que pareciam guichês de atendimento.
Maria procurou por seu óculos em vão, pensou tê-lo esquecido em casa. Levou um belo susto quando um simpático jovem apareceu ao seu lado.
— Dona Maria, por gentileza me acompanhe.
Ela pulou assustada.
— Assim você me mata de susto, menino!
Ele quase deu risada, mas preferiu não falar nada, girou em seus calcanhares e dirigiu-se a um dos guichês.
Sem muitas opções e com vergonha por não saber onde estava, a velhinha não teve outra escolha senão seguir o rapazinho. Sentou-se em uma confortável cadeira e ouviu a frase mais aterrorizante da sua vida.
— Seja bem vinda ao inferno. Disse o jovem enquanto retirava um grosso arquivo de dentro de uma pasta com o nome “Maria Cândida da Silva”.
Ela arregalou os olhos ao ver a pasta com seu nome completo, levantou a voz e disse:
— No inferno? Mas que negócio é esse?
— Não se preocupe, o inferno não é como as pessoas imaginam. A senhora vai adorar, aqui é praticamente uma colônia de férias.
Dona Maria não estava convencida. Uma coisa era esconder seus sintomas de Alzheimer dos filhos, outra completamente diferente era ter ido parar no inferno! Não, ela não. Estava ficando louca? Nunca se entregou a uma vida de prazer e excessos como o degenerado do seu falecido marido. Se alguém merecia ir pro céu era ela.
— Maria, perceba, a senhora está sem óculos e mesmo assim sua visão está perfeita, certo? Disse o jovem, que a essa altura já não contava mais com a simpatia da velhinha.
Ela olhou ao redor e percebeu que de fato sua visão estava melhor do que nunca, mas sua única preocupação no momento era saber por que diabos ela foi parar no inferno.
— Moço, deve ter acontecido algum engano. Aqui não parece ruim mesmo, mas dediquei toda minha vida a Deus. Porque estou aqui?
— Nem tudo pode ser resumido de maneira tão simples assim, Maria. Disse o jovem sem levantar os olhos das páginas do arquivo.
— Eu fui à igreja todos os domingos por anos e anos. Nunca peguei algo que não era meu, criei meus filhos tementes a Deus, dei esmola aos necessitados, tirei muita gente do mal caminho. Qual o sentido da vida se depois de tudo isso eu vim parar no inferno?
— A senhora é sim uma boa pessoa – disse ele com um sorriso genuíno – e por isso que está aqui. Todo mundo acaba passando mais ou menos pelas mesmas experiências na vida, entretanto, muitos preenchem seu vazio existencial com ilusões, fanatismo e religião.
Dona Maria se remexia na cadeira, revoltada com as palavras do rapaz.
O jovem prosseguiu: — A busca por um sentido é na verdade uma necessidade humana de compreender o incompreensível.
— Bobagem! Eu tenho meus valores, minhas crenças, e não é um pirralho que vai me dizer se eu vivi a minha vida do jeito certo ou errado. Eu sou uma pessoa boa e não tenho que provar nada pra ninguém! Apenas Deus pode me julgar.
— Acreditar em Deus não é muleta pra justificar seus valores, Maria. Vejo pelo seu arquivo que a senhora passou sua vida se preocupando demais com a opinião dos outros, com medo de viver seus verdadeiros sonhos. Ninguém é bom ou ruim o tempo todo. Seres humanos são falhos por natureza, a senhora não fez apenas coisas boas, né? Veja, quando sua sobrinha casou com outra mulher você nunca mais falou com ela ou foi visitá-la.
Dona Maria sentiu vergonha, e seus olhos encheram de lágrimas. — Eu fiz o que julguei certo! O que me foi ensinado pela igreja, e por isso eu não mereço ir pro céu? Eu dei minha contribuição ao universo de outras formas! NÃO É JUSTO!
O rapaz continuou com sua inabalável paz. — O universo é indiferente a tudo e a todos, ele raramente responde às expectativas. Todos seus sonhos, medos, e comportamentos se devem ao fato de que os seres humanos têm um conhecimento limitado. E por isso, há uma oportunidade de finalmente assumir as rédeas da sua mente, aqui, no inferno. Aqui temos alguns papas, Martin Luther King, Freud, até a Madre Teresa está aqui.
— Eu não tô entendendo nada! Como é que alguém que só fez coisas boas veio parar aqui?
Ele pacientemente continuou:
— Olha Maria, você não entendeu como as coisas funcionam por aqui. Tente ver a situação de uma forma mais ampla, volto a repetir; o inferno é para que você aproveite as coisas boas, viva em paz e pratique a empatia. O ser humano passa toda a sua existência temendo a morte, e aqui, sem esse peso, é possível encontrar a si mesmo. A ideia de céu e inferno que o mundo tem é completamente errada. O céu não é um lugar bom, o inferno não é um lugar ruim.
— Mas quem está no céu, afinal? Insistiu a velha.
— Só quem não tem salvação – disse o jovem – e quem se recusa a ficar aqui e ver o mundo com outros olhos.
— Tem assassinos aqui? Questionou a idosa ironicamente.
— Sim, muitos
— Bin Laden?
— No inferno.
— O bandido da luz vermelha?
— No inferno também, Dona Maria.
— Meu marido está aqui?
— Claro que sim!
— Hitler?
— Esse foi pro céu.
— Jesus está aqui? Perguntou incrédula.
O Jovem assumiu um tom sério pela primeira vez: — Não, Jesus está no céu ao lado de Deus, e lá eles usam seus próprios métodos de ensino.
Mas Dona Maria não queria saber: — E eu tenho mesmo que ficar aqui no inferno? Dediquei a minha vida a Deus, se ele está no céu, eu tenho o direito de ir pra lá e ficar ao lado dele. Completou resignada
— Tudo bem, a escolha final é sua. Não obrigamos ninguém a ficar aqui. Se a senhora quiser mesmo ir pro céu, eu vou chamar o meu superior, e ele resolve tudo, ok?
Ela não perguntou como era o céu ou que tipo de coisas aconteciam por lá, apegou-se à sua fé cega e Dona Maria foi pro céu.
2 comentários
Muito bom Eduardo!
ABL já!!!! Gostei grande!